Olá Iniciantes, como vão? Esperamos que estejam bem! Este é meu primeiro post  de 2023, portanto desejo aos leitores um próspero ano no...

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Fahrenheit 451: Queimaduras de quarto grau

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    Olá Iniciantes, como vão? Esperamos que estejam bem! Este é meu primeiro post de 2023, portanto desejo aos leitores um próspero ano novo, cheio de leituras, séries, filmes, quadrinhos e demais hobbies prazerosos. E não há melhor modo de fazer isso do que começar o ano com uma recomendação de leitura: Fahrenheit 451, de Ray Bradbury. 

Edição analisada: Edição padrão de Fahrenheit 451

Autor: Ray Bradbury; tradução de Cid Knipel;

Ano de lançamento: 2003;

Páginas: 215;

Para comprar e ter mais informações sobre o livro, acesse o site da editora aqui.



[Anotação básica: " ºF "= Fahrenheit, medida de temperatura adotada em diversos lugares do mundo, especialmente naqueles anglófonos, possui um cálculo diferente do nosso modelo " ºC " = Celsius; para se calcular a relação entre ºF e ºC é preciso seguir uma fórmula: °C = (°F − 32) ÷ 1, 8. Por exemplo, ºC = (451-32)/1,8 = 233ºC.]

Autor incendiário:

    Difícil falar da história da ficção científica sem colocar Bradbury no alto escalão dos escritos deste subgênero que viveram e produziram suas obras ao longo do século XX. Aqui, em terras brasileiras, talvez Fahrenheit não seja tão (re)conhecido quanto deveria, contudo, nos países anglófonos (isto é, falantes da língua inglesa) ele é um autor popular e extremamente prestigiado, o que é expresso pelos seus prêmios: Benjamin Franklin Award (em 1951), World Fantasy Award for Lifetime Achievement (em 1977), Grand Master Nebula Award (1988), a Medalha Nacional das Artes (2004) e o prêmio Pulitzer (2007). Todas estas e outras premiações podem ser vistas aqui. Tantas premiações só podem partir de um ponto: a carreira literária de Bradbury. Sua produção inclui muitas obras de sucesso como: a coletânea "Crônicas Marcianas", "O homem ilustrado", "Fahrenheit 451" etc., além de sua contribuição para o cinema, onde roteirizou a famosa adaptação de Moby Dick (1956) - tal roteiro lhe garantiu um Oscar. A sua principal casa editorial aqui no Brasil é a Biblioteca Azul, da Globo Livros. Diante disto, fica claro que não estamos falando de um autor de "uma só obra de sucesso", ao contrário, Ray conseguiu viver para os livros e dos livros até 2012, ano em que faleceu - mesmo depois de seu AVC, ocorrido na década de 2000. 

Foto de Ray Bradbury, um dos maiores escritores de ficção científica do século XX.


O livro das chamas:

    Mas, se estamos diante de um autor tão prolífero, por que Fahrenheit é o seu livro mais famoso, ao ponto de adaptações célebres, como o filme do grande diretor François Truffaut (em 1966)? Poderíamos dizer que é a capacidade de usar metáforas e analogias com uma precisão que nos prende, ou ainda, que o ritmo, o cenário distópico, as personagens, a velocidade com que se desdobram os eventos é tão rápida que não conseguimos pensar em nada além do que está por vir à cada parágrafo. 

Cartaz do filme de Fahrenheit, dirigido por François Truffaut (1966)


    No entanto, creio que nem isso seria o bastante para falar da grandiosidade da obra. Acredito mesmo que nem tudo possui uma perfeição, que o núcleo de personagens realmente desenvolvidos é pequeno, diria (o que já foi dito após a publicação do livro, e que o próprio Bradbury respondeu)* que houve sub-representação das personagens femininas, que não vemos pluralidade no romance. Todavia, a força, a vitalidade de Fahrenheit é seu enredo: a civilização americana decidiu, por si mesma, parar de consumir livros, reduzindo cada vez mais o hábito da leitura ao ponto de se tornar uma prática criminalizada, e os livros são alvo de censura. Os responsáveis pela censura são os bombeiros, que, longe de apagarem o fogo, eles produzem as queimas. O protagonista de nosso romance é um destes bombeiros, Guy Montag. Aliás, é por isso mesmo que o título do livro é este: 451ºF é a temperatura em que o papel começa a incinerar (equivalente aos 233ºC, conforme dito acima).

    Guy sempre viveu seus dias assim: atônito por queimar todas as palavras, incendiar Shakespeare, Jane Austen, Homero, se alegrava com as cinzas das obras de Kafka, Platão, Aristóteles, Sêneca, Marco Aurélio, Dom Quixote, Dante Alighieri, e mesmo a Bíblia. Afinal, os livros não devem ser vistos como bons, sequer objetos de crítica, pois para criticá-los seria preciso lê-los, e ler é perigoso. Não pelo processo em si, mas a ideia de viver uma ficção, de se prender numa realidade que não a nossa, a televisionada, aquela das telas (Pobre Bradbury, sequer conheceu a força dos smartphones!); em suma, viver uma fantasia é viver o irreal, ou seja, viver uma loucura. E mesmo os livros de não-ficção possuem seu grau de insanidade, quando ideias colocadas lado a lado entram em choque, conflitam, despertam a angústia e não a síntese esclarecedora; então, por que insistir nos livros, não?


Capa da primeira edição de Fahrenheit, da Ballantine Books (1953).


     Essas posições "anti-livros" encontram sua força em duas figuras: Mildred (esposa de Guy) e Beatty (líder da unidade dos bombeiros de Guy, logo, seu supervisor). Mildred é uma figura distante - de Guy e do mundo; está sempre preocupada em manter suas "conexões" com os personagens da família (da novela 3D que ocupa toda a sala de estar de sua casa). Já Beatty representa o cinismo e hipocrisia dos censuradores: se por um lado Beatty é extremamente fiel à hierarquia e aos procedimentos governamentais aos quais os bombeiros estão sujeitos, por outro, ele recita frases e passagens de alguns dos maiores escritores da literatura: Walt Whitman, Joyce, Shakespeare, Henry Thoreau (autor já resenhado pelo seu Desobediência Civil) etc. Como poderia? Onde e como este conhecimento é adquirido por Beatty? Ao longo da narrativa este ponto se desenvolve e leva à uma conclusão surpreendente. Mais personagens se somam ao enredo, alguns logo nos primeiros momentos, outros na metade do romance, mas não desejo falar muito sobre, pois o objetivo aqui é estimular os leitores deste post a conhecer o universo que Bradbury quis mostrar ao mundo - e este convite se faz mais necessário.

O título do post:

    Explicar o título do post na sua conclusão é uma novidade para todos nós: o que seria uma queimadura de quarto grau? Ora, é a queimadura da alma. Acredito que falar sobre este tipo profundo de queimadura seja o desejo do autor do Fahrenheit: os 451ºF não representam somente a incineração do papel, mas também a queimadura mais profunda que podemos chegar: a perda de nossa cultura, nossa liberdade de pensar, de criticar, de indagar e de explorar um outro mundo (ainda que somente pela ficção). Nós, humanos, brasileiros ou não, temos vivido uma realidade unidimensional, ou seja, que só possui uma dimensão, um só prisma: o real é o que nos salta os olhos. Se enxergamos as coisas por um só prisma, não há espaço para pensar alternativas - em última instância, não conseguiremos conceber a vida senão deste modo. A obra de Bradbury denuncia a pequenez de querer viver nesta realidade, de não encontrar, na liberdade do reino ficcional, caminhos para instaurar a liberdade no plano material. As utopias de Thomas Moore e Tomás Campanella existem para buscarmos aquela realização ficcional não na ficção, mas no real, no mundo concreto, quando sequer pensamos assim, qual a solução? Estaríamos já carbonizados o bastante, em nossos espíritos, ao ponto de não conseguirmos sequer conceber uma outra realidade? Pensar um mundo menos violento, mais pacífico, livre e humanizado? 

Crítica final:

    Evidentemente, não posso deixar de recomendar uma leitura tão fundamental quanto esta que pude degustar. A escrita de Bradbury é um norte a se seguir: a sua capacidade de lidar com analogias e metáforas, um grau de descrição (de cenários e personagens) suficiente, isto é, sem exagerar nos detalhes, ao mesmo tempo que é possível conferir forma e corpo aos seres imaginados. O ponto fraco de sua obra, conforme dito acima*, é a falta de destaque em figuras femininas, como Mildred, e não porque ela não se envolveu na ação diretamente - a fraqueza da personagem está em não ser devidamente explorada: poderia mostrar mais do transe em que a mesma vive, ou até a origem deste transe, onde a chama do casal Guy e Mildred se perdeu. O próprio autor recebeu críticas de diversas partes por isso, perguntando se não seria o caso de apostar numa segunda edição do livro, ou um complemento num conto, ou peça. Nada disso ocorreu por parte dele, salvo pequenas diferenças em suas produções teatrais. Contudo, o que foi escrito assim permaneceu. Este tipo de testamento está presente nos extras da edição da Biblioteca Azul que adquiri. São muito interessantes, revelam um olhar sensível do autor após anos desde a primeira publicação do livro, portanto os considerei de grande valor e um acréscimo bacana à edição (que está ótima, tanto as capaz, diagramação, papel e tradução). 

    De qualquer modo, podemos dizer que este sim é um livro marcante: apesar do núcleo pequeno de personagens (quatro centrais, e um "bônus" que é inserido na trama logo no início), acredito que Fahrenheit seja coeso, reflexivo, belo, ágil, empolgante e, de certo modo, enxuto - lida com poucos personagens, poucas cenas de ação, poucos cenários, mas entrega todo este universo com muita qualidade. Portanto, sim, devemos dar uma chance a este livro que, longe de ser um fósforo, é um Sol, que nos aquece espiritualmente. 

Agradeço à você, que leu todo este post. Comente o que achou, dê sua opinião! Um forte abraço! Até mais!



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