Até então inédito no Brasil, os Diários  de Kafka eram uma peça faltante no grande quebra-cabeça que é o legado literário deste autor, sendo...

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Diários de Kafka (1909-1923): não falar do cotidiano

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Até então inédito no Brasil, os Diários de Kafka eram uma peça faltante no grande quebra-cabeça que é o legado literário deste autor, sendo um dos meus favoritos! Então hoje decidi quebrar a (semi-)rotina de publicações do blog para usar deste espaço branco do virtual e produzir algo não-cotidiano, como também fez Kafka ao escrever seus diários. 

Dados técnicos:
-Editora: Todavia
-Páginas: 705 páginas
-Tradutor: Sergio Terraroli
-Lançamento oficial: 7 de maio de 2021



Um anti-diário:

Frank Kafka (1883-1924) está entre os maiores escritores do século XX. Em minha estante encontramos duas edições d' O Processo, A Metamorfose (ed. Antofágica) e agora, seus diários. Na wishlist do autor deste post, vocês encontrariam obras como O Castelo, Na colônia Penal, Cartas ao Pai etc. além, claro, de toda uma literatura crítica sobre seus escritos, passando por Gilles Deleuze (1925-95) e Félix Guattari (1930-92). O que há de tão interessante na escrita kafkaniana? 

Talvez porque em suas obras encontraríamos sentimentos que marcam o surgimento da burocracia ou as formas de violência que as autoridades políticas e institucionais usam para nos diminuir, assuntos presentes em dissertações filosóficas, editais de jornais, estudos sociológicos de Max Weber (1864-1920) e afins. Ou podemos ver em Kafka um autor que, tomado por um espírito democrático, não criou um texto de difíceis palavras, e que por isso seria um caso raro na história da literatura ocidental moderna. 

E que também encontraríamos neste escritor uma nova forma de contar uma história, uma narrativa que parte de seu clímax. Gregor Samsa e Joseph K (protagonistas de seus livros, A Metamorfose e O Processo, respectivamente) iniciam o enredo se transformando em insetos monstruosos após sonhos intranquilos (caso de Gregor Samsa, o caixeiro-viajante) e sendo processado sem motivo aparente e precisa passar por toda burocracia para provar sua inocência. Nas duas obras encontramos personagens que se sentem menores frente ao mundo que vivem: um inseto e um homem tão alienado de sua vida que sequer saber o motivo de seu processo. 

Todas as qualidades da obra de Kafka não cabem neste post, nem em lugar algum. Mas é possível que o leitor deste post deseje conhecer mais a fundo a mente de uma pessoa ilustre como o escritor, e queira agora adquirir seus diários para entrar um pouco na mente de Kafka. Temo dizer que não seja tão fácil. "Os Diários" de Kafka são páginas, expressões, ideias soltas, rabiscos, introduções sem fim, conclusões sem início, são tudo, exceto um diário normal. Ou melhor, raras vezes vemos o autor utilizar as páginas para comentar de seu dia, ele preferia criar cenários, discutir o sentimento e motivações dele mesmo. Kafka só queria viver daquilo que amava. A dupla vida de funcionário burocrático e escritor entram em choque constantemente ao longo dos diários, e nós facilmente podemos nos identificar com o autor. Não é desejo de todos serem escritores, é verdade, contudo parece que muitos de nós somos tomados pelo desejo profundo de fazer algo maior por nossas vidas, e sempre há "um trabalho burocrático" que nos atrapalha.

Os diários de Kafka são a expressão de sua insatisfação constante, de um autor que precisa dividir as seis horas de trabalho do dia com o tempo em família e o ofício de escritor, que ocorre à noite, no seu quarto, no silêncio que toma a casa e a rua onde mora. Só nessa hora o "Dr. Franz Kafka" some, entra em cena o "Franz Kafka". 

Um dos livros que nasce no meio das anotações de seu diário é O Veredicto, que, escritor de uma só vez, marca os anos seguintes da carreira literária do autor - se em 1912 temos a gênese d'O Veredicto, anos mais tarde teríamos O Processo (1926) e demais obras, que consagrariam o nome de Kafka. Daí a importância de seus diários estarem disponíveis ao público: é um mergulho nas angústias de um escritor moderno, que não se pode dar ao luxo (como fizeram outros que o precederam) de viver para a escrita: Kafka precisa da escrita para viver a vida que lhe é negada pelos afazeres cotidianos. 

Entretanto, é importante também ressaltar o outro lado: de modo nenhum podemos olhar Kafka como um escritor deprimido. Ao contrário, ele sempre conseguia reservar tempo para praticar esportes (adorava natação!), curtir às noites da cidade, aproveitar para passear, interagir com sua família. Kafka foi uma mente inventiva por conseguir representar na força das palavras a pequenez humana face ao mundo que se modernizava e devorava cada um de nós, aos poucos, pelas horas trabalhadas, pelos chefes, pelas dívidas que nos submetíamos etc. Seus textos, com a força que possuem, foram abraçados pela cultura moderna ao ponto de criar a expressão "kafkaniano(a)" ao trabalhar com situações absurdas de nosso cotidiano. 

O post de hoje e comentários sobre edição:

Normalmente sabemos bem o que falar quando escrevemos algo aqui no blog da Iniciativa. Hoje, não foi assim. Não porque o material não é bom, ou nem por ser algo raso, ao contrário. Os diários de Kafka são referência, onde quer que sejam lançados, são muito bem recebidos. Mas é de uma dificuldade enorme avaliar o conteúdo de um diário: quão valiosas são as falas e experiências de Outrem? Anne Frank, Kafka... Correspondências também, de Jorge Amado com Saramago; escritos deixados por Sartre... Essas peças faltantes compõem grandes monumentos da cultura ocidental, deixá-las de lado não parece a mais sábia das soluções, por isso, ao final do post, deixarei links de outras leituras que vão complementar a experiência dessa minha fala sobre os Diários. Agora vamos falar da edição!

Aqui temos a capa de "Baking with Kafka" (Cozinhando com Kafka), de Tom Gauld. O quadrinista e ilustrador demonstra constantemente o apreço às obras de Kafka, e agora é capista da edição da Todavia!

A edição da Todavia é caprichada, conta com ilustrações internas do próprio Kafka, mas a capa é do fofíssimo Tom Gauld. Eu tenho a versão de e-book (preciso comprar estantes!), então não posso avaliar as páginas e qualidade do papel. O que senti falta foi mais de um prefácio: a edição privilegia a leitura do diário, mas talvez fosse mais feliz a empreitada se fosse esclarecido que, logo em 3 ou 4 páginas, Kafka abandonaria o projeto do diário e focaria na escrita pela própria escrita, com questões que beiram o metafísico, de uma alma que sai do corpo e encontra na escrita sua plena realização. Claro, o leitor pode sentir esse processo ao ler o livro, mas com uma legítima desconfiança, sentimento de que "algo está fora do lugar" - que logo é resolvido, desde que continue na leitura. É por conta desse sentido de "diário" que agora compreendo o gênero textual como algo maior do que ele é normalmente conhecido: diários podem ser anti-cotidianos! Podem falar de coisas que não estão no mero acordar, passar o dia, dormir. Diários podem dizer coisas das mais belas como... {aqui me permito pegar um trecho do livro para citar}

 "Depois de cinco meses da minha vida durante os quais não consegui escrever nada que me satisfizesse e dos quais poder nenhum vai me ressarcir, embora todos tivessem obrigação de fazê-lo, vem-me a ideia de tornar a falar de algo comigo mesmo. Toda vez que me interroguei de fato, sempre respondi, sempre houve o que arrancar de mim, deste amontoado de palha que sou há cinco meses e cujo destino parece ser o de pegar fogo e arder no verão mais rapidamente do que o espectador é capaz de piscar... Meu estado não é o de infelicidade e tampouco o de felicidade, não é o da indiferença nem o da fraqueza, não é cansaço nem o interesse em outra coisa, mas o que é então? Que eu não saiba há de ter a ver com minha incapacidade de escrever. E esta, creio compreendê-la, ainda que lhe desconheça a razão. É que todas as ideias que me ocorrem, não me ocorrem desde a sua raiz, mas somente a partir de algum ponto intermediário. Tente segurá-las, tente segurar-se numa haste de grama que só começa a crescer a partir da metade do caule. Alguns por certo logram fazê-lo...A cada dia, porém, cabe voltar ao menos uma frase na minha direção, à maneira como hoje se voltam os telescópios na direção do cometa. Então, um dia, eu talvez venha a comparecer diante dessa frase, atraído por ela, como aconteceu no último Natal, por exemplo..."

Despedida:

Falamos bastante no post de hoje sobre o autor e escritor Franz Kafka, a influência de sua obra, como um diário pode ser mais que um diário, e como muitas experiências de nosso dia a dia são tão absurdas que poderiam ser um enredo de um livro kafkaniano. Caso tenham se interessado na obra, comente em nosso post, procure comprá-la na livraria mais próxima de sua casa! Até breve!

Links que auxiliam a sua experiência: 

Revista QuatroCincoUm

Sobre "O Processo", texto da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH)



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